domingo, 31 de janeiro de 2010
O DIA DAS BATATAS
Enani Maller
Era muito estranha a loja do Seu Belarmindo, pois media um metro e meio de frente, por trinta metros de fundo. Na verdade um imenso corredor no qual Seu Belarmindo transitava ao meio, tendo os lados entulhados de mercadorias. Ali se encontrava de tudo, mantimentos, roupas, eletrodomésticos, remédios, brinquedos, fumo de rolo, ratos, material para construção, enfim a loja era um verdadeiro tudo em um, tudo em um corredor, para ser mais exato.
Mas a desproporção nas medidas da loja tinha uma explicação, onde hoje está estabelecido o Seu Belarmindo, outrora fora uma servidão que levava a várias casas, que foram desapropriadas para dar lugar a uma estrada de ferro. Seu Belarmindo que sempre foi dado ao comércio, se instalou na entrada da servidão, agora sem serventia, com uma carrocinha de pipocas, pois o local era bastante adequado, por ficar próximo a duas escolas primárias.
O negócio das pipocas ia bem, mas de vez em quando alguém pedia um refrigerante, afinal, pipoca salgada da sede, Seu Berlamindo resolveu o problema com um isopor e algumas pedras de gelo. Uma ou outra criança procurava por doce, então Seu Belarmindo arranjou uma pequena vitrine e passou a oferecer também doces. E por que não salgados? _ Sim, Seu Belarmindo passou a vender também salgados variados, a freguesia que aumentava dia a dia, tinha que estar sempre satisfeita.
Em um dia de chuva Seu Belarmindo se viu em dificuldades, porem Zé Meia Colher, pedreiro conhecido pelos maus serviços prestados à comunidade, lhe emprestou algumas telhas de amianto, sobra da ultima demolição que lhe foi confiada, com as quais Seu Belarmindo cobriu a carrocinha, o isopor e a pequena vitrine dos salgados. Ele, porém, ficou no desconforto daquela chuva fina e fria, que lhe doía até os ossos. No dia seguinte providenciou mais algumas telhas, afinal, como ele dizia: _ Não tenho horta nas costas, portanto não preciso ficar sendo regado por está garoa dos infernos dia inteiro.
E assim, com a omissão do poder público, que não fiscalizava a invasão do imóvel e nem o comércio que funcionava sem a devida regulamentação, Seu Belarmindo foi expandindo e melhorando suas instalações, até tomar conta de toda a servidão.
Apesar do dom para o comércio, Seu Belarmindo não era um nenhum primor em matéria de organização, por exemplo: Mantinha no fundo da extensa loja, os produtos que eram mais vendidos, o que o obrigava a percorrer o longo caminho (trinta metros pra ir e trinta pra voltar) por várias vezes, para atender as solicitações de um mesmo cliente.
Certo dia, em que Seu Belarmindo estava muito nervoso, devido a problemas conjugais, pois a esposa, trinta anos mais nova que ele, havia viajado para visitar a família e já devia estar de volta há vários dias, mas nem notícia deu. Também os problemas financeiros o atormentavam, o número de fiados era cada vez maior e a inadimplência nunca havia sido tão grande. Justamente nesse dia que aconteceu na cidade de Bom Jesus do Sul, “O dia das batatas”.
Seu Belarmindo sempre teve um grande estoque deste produto, pois segundo ele: _ Tendo batata em casa a gente não passa fome, faz-se um purê de batata, batata frita, batata cozida, doce de batata, pão de batata, salada de batata, batata murro, batata recheada, batata sotê, conserva batata. _ E seguia uma extensa lista, de dar água na boca de beduíno.
Naquele fatídico doze de maio, nem bem abril a loja, chegou seu Baltazar. Senhor de setenta e cinco anos, criou todos os oito filhos vendendo sorvete pelas ruas, praças e praias da cidade, era considerado pelos colegas de classe o maior sorveteiro de Bom Jesus do Sul, realmente, um grande sorveteiro.
_ Bom dia Seu Belarmindo! _ Seu Baltazar com um cachecol enrolado ao pescoço, chegou cumprimentando o comerciante.
_ Bom dia Seu Baltazar._ Respondeu Seu Belarmindo cabisbaixo.
_ Minha velha vai me fazer hoje uma sopinha de batata batida no liquidificador, pois eu estou com uma baita dor de garganta e não posso comer nada sólido.
_ Isso é de tanto chupar sorvete. _ Brincou Seu Belarmindo, não querendo demonstrar sua tristeza.
_ Não, eu não chupo sorvetes, é contra os meus princípios, seria como traficante viciar em cocaína, cafetão apaixonar-se por prostituta; arruína o negócio.
_ Quantos quilos de batatas Seu Baltazar?
_ Somente um quilinho, Seu Berlamindo, é só pra mim mesmo. _ Seu Berlamindo vai até o final da loja, coloca algumas batatas no pacote que levou com sigo e volta percorrendo o longo caminho, pesou na presença do cliente, Seu Berlamindo gostava de tudo às claras, dava mais confiabilidade aos negócios, novecentos gramas, Seu Belarmindo voltou ao fundo da loja, percorrendo os sessenta metros de ida e volta, vem trazendo quatro batatas nas mãos, porem três bastaram para completar um quilo.
_ Aqui estão suas batatas Seu Baltazar.
_ Obrigado Seu Belarmindo.
Seu Belarmindo vai até o final da loja e leva a batata que sobrou.
Quando volta ao balcão encontra dona Verônica.
_ Bom dia Seu Belarmindo, o senhor tem batata.
_ É o forte da casa, dona Verônica.
_ Eu vou querer um quilo.
_ Pois não._ E foi Seu Belarmindo até o final da loja.
_ Aqui está freguesa.
_ Pensando bem, eu vou levar mais meio quilo, Seu Belarmindo.
_ A senhora é quem manda. _ mais trinta metros pra ir, trinta pra voltar.
_ Aqui estão senhora, somente as batatas?
_ São sim, hoje me deu vontade louca de comer batata frita, muito obrigada Seu Belarmindo._ Pagou e se foi.
_ Seu Belarmindo ia senta-se para descansar um pouco, quando chega mais um cliente, Antunes,o guarda noturno. _ Seu Belarmindo, dois quilos de batatas por favor. Logo após chega, João Gordo. ¬_ Seu Belarmindo, um quilo de batatas. Depois vem D. Anália, Seu Pedro padeiro, Zé da Égua, Mario Cebola todos queriam batatas, trinta metros pra ir, trinta pra voltar, as três irmãs língua de trapo, um quilo pra cada, Padre Gabriel, esse levou quarenta quilos, ele coordenava o orfanato da cidade, o que demandou quatro viagens, Antônio do táxi, Zé da Zira, e tome batatas. Até que chegou André Sapato Novo acompanhado de Antônio Cachaça.
_ Seu Belarmindo, um quilo de batatas, por favor. _ Pediu André.
_ E você, não vai querer um quilo de batata também, vai? ¬_ Perguntou Seu Belarmindo a Antônio Cachaça, que na verdade só bebia conhaque. É certo que o autor do apelido percebeu adicionar cachaça ao nome de Antônio, humilhava mais do que conhaque, que é bebida de origem estrangeira. Por isso Antônio sempre relutou em aceitar o apelido, não tendo nenhuma cerimônia para xingar a mãe de quem se atrevesse a se referir a ele pela maldita alcunha, sem perceber que a relutância é o catalisador dos apelidos.
_ Não Seu Belarmindo, eu não vou querer um quilo de batatas, não. _Respondeu Antônio Cachaça _ Seu Belarmindo foi até o fundo da loja, mais sessenta metros, trazendo um quilo e meio de batatas para André, que pagou despediu e se foi.
Seu Belarmindo voltou-se para Antônio Cachaça e pergunta:
_ E você Antônio, o que manda?
_ Eu quero duzentos e cinqüenta gramas de batatas.
A polícia chegou vinte minutos após o ocorrido, Antônio Cachaça caído do lado de fora do comércio, Seu Berlarmindo do lado de dentro. Por testemunha somente Zé do Remédio, o farmacêutico, estabelecido próximo a Seu Belarmindo.
_ Olha Seu delegado quando eu ouvi o primeiro disparo, olhei em direção ao comercio de seu Belarmindo, ele apontava a arma para o Antônio, ainda deu mais dois tiros no coitado e depois atirou contra a própria cabeça.
_ Mas ele não falou nada? _ Perguntou o delegado.
_ Falou sim. _ Respondeu Zé do Remédio. _ Eu não sei por que, mais antes de se suicidar, olhou pro Antônio caído no chão e falou bem alto: _ Vai comprar batatas no inferno.
domingo, 24 de janeiro de 2010
SORTE DE KOKURA OU AZAR DE TSUTOMU YAMAGUCHI?
Ernani Maller
Há no Japão uma expressão que é “Sorte de Kokura”. Eu explico o porquê: Quando da Segunda Guerra Mundia, três cidade japonesas foram escolhidas como possíveis alvos das bombas atômicas: Hiroshima, Nagasaki e Kokura. No dia 6 de agosto de 1945, quando foi lançada a primeira bomba, a de urânio, que os americanos, em tom de deboche e pouco caso com seu poder de destruição, chamavam de Little Boy (garotinho), em Hiroshima, Kokura seria a segunda opção, caso em Hiroshima o tempo estivesse nublado, como lá o tempo estava bom os americanos lançaram, pela primeira vez na história, uma bomba de energia nuclear sobre uma população de civis inocentes, matando de uma só vez mais de 140 mil pessoas, que não tiveram oportunidade de ao menos saber o que lhes atingiu.
O Coronel Paul Tibbets Jr. era o comandante do grupamento 509o, que foi transferido para a pequena ilha de Tinian, no Arquipélago das Marianas, no meio do Pacífico, foi ele quem comandou o B-29, que levava na lateral o nome de sua mãe: Enola Gay. Voando 9 mil metros de altitude, porém, desceu a 4.550 metros para lançar a bomba que explodiu a 500 metros do chão, transformando em vidro a terra em um raio de mais de 300 metros, provocando um desloacamento de ar com vento de mais de 800 kilômentros por hora.
Passaram-se três dias e os bombardeiros B-29 americanos voltaram à ação, desta feita, o alvo primário seria Kokura e o secundário Nagasaki, porém ao chegarem à Kokura o tempo estava nublado, então partiram para a segunda opção: Nagasaki, aí lançaram a segunda bomba, com carga atômica de plutônio, Fat Man (homem gordo).
Nas duas ocasiõs Kokura foi poupada, primeiro pelo bom tempo em Hiroshima e na segunda ocasião, pelo mal tempo em seu próprio território. Daí nasceu e expressão “sorte de Kokura”, diz-se de alguém que está com muita sorte.
Morreu 11/01/2010, aos 93 anos, Tsutomu Yamaguchi (foto), que na época da Segunda Guerra era morador da cidade Nagasaki, porém, estava resolvendo negócios em Hiroshima no dia em que foi lançada a primeira bomba. Ali ele foi medicado,devido a alguns ferimentos na parte superior do corpo e voltou para sua cidade: Nagasaki, três dias depois sofreu com a segunda bomba. Tsutomu Yamaguchi, até onde se sabe, foi o único sobrevivente dessas duas catástrofes causas das pela intolerância do homem.
Mas Tsutomu Yamaguchi é mostra de que pode haver sorte até mesmo no azar. Por infelicidade ele estava nos dois eventos catastróficos, mas por sorte se salvou em ambos. Nas duas explosões, que causaram grandes danos em um raio de quatro kilômetros, ele estava a mais ou menos a três kilômetros de distância.
Na segunda explosão, a de Nagazaki, ele, mesmo machucado, se apresentou no estaleiro em que trabalhava,Quando soou o alarme antiaéreo, a maior parte de seus colegas foram para um abrigo, ele resolveu ficar com a mulher e o filho, a bomba caiu exatamente em cima do abrigo, matando todos que ali estavam.
Apesar dos ferimentos, Tsutomu Yamaguchi, presenciou a história, tornando-se um palestrante que falava em nome da paz, além de ter escrito livros e músicas sobre os episódios.
Na verdade os Estados Unidos pretendia mostrar ao mundo, e principalmente a União Soviética, o seu poderio nuclear. Em 15 de agosto de 1945, diante da destruição causada pelas bombas, o Japão se rende, pondo fim à Segunda Guerra mundial e iniciando a chamada Guerra Fria.
Em outbro de 1982, enquanto eu passava pela Praça D. Pedro em Petrópolis, minha cidade natal, ouvi alguém chamar pelo meu nome, era um músico amigo meu, que correndo ao meu encontro disse: olha estão precisando de um músico para ir se apresentar no Japão, e eu sugeri que você fosse, vá falar com o empresário que ele deve te escolher para fazer essa temporada lá. Eu respondi que iria depois falar com a tal pessoa, mais o meu amigo insistiu que eu fosse naquele momento. Acabei indo mais pela insistência dele, do que por acreditar que faria uma viagem para o outro lado do mundo. Eu não ia bem na profissão de músico e a auto estima estava muito baixa para acreditar em qualquer coisa, alias eu tinha ido ao centro da cidade para espairecer, esquecer um pouco as adversidades daquele momento da minha vida.
Bem, eu fui, falei com o empresário e acabei sendo contratado para me apresentar na Boate Saci Pererê, justamente na cidade de Kokura, onde fiz a maior parte dos meus 180 shows no Japão.
Naquele 9 de agosto de 1945, em que a cidade de Kokura estava com o tempo nublado, muitos moradores podem ter achado que não era um bom dia, mais não sabiam a sorte que estavam tendo. Assim como eu não sabia que naquele dia de outubro de 1982, quando caminhava desolado pela cidade de Petrópolis, que também estava com sorte,mas não “Sorte de Kokura”, essa se diz quando alguém se salva de algo muito grave sem percebe o que lhe podia acontecer.
O “SAMBA MODERNO” E O PREÇO DA ASCENSÃO SOCIAL DO NEGRO
Ernani Maller
O acesso ao mercado fonográfico proporcionado por Francisco Alves aos compositores do Estácio teve seu preço, e que a princípio não foi dos mais nobres. O cantor que já era um renome nacional condicionou à gravação dos sambas a venda dos mesmos, de modo que em alguns casos o nome do autor nem se quer constava no selo do disco, como diz o próprio Ismael Silva:
Um dia, doente, num hospital, fui procurado por Alcebíades Barcelos. Perguntou-me se eu queria vender o samba ao Chico Viola7. (apelido de Francisco Alves) Cem mil réis era o que ele oferecia. Aceitei depressa e o samba ficou sendo propriedade dele, apareceu com meu nome. Depois vendi “Amor de Malandro”, por quinhentos mil réis, mas dessa vez eu não figurei na gravação como autor. Fiquei zangado é claro. (SODRÉ, 1998, p. 94).
Mas essa passa a ser uma nova realidade vivida pelos compositores de samba, em sua grande maioria negra e de classe baixa que viam da possibilidade de ter um samba seu ser gravado por um cantor de sucesso, tendo assim alguma expectativa de ascensão social.
Porém, vai ficar bem evidente que se não fosse à aproximação de Francisco Alves dos compositores do Estácio, essa segunda fase do samba, o dito “samba moderno”, poderia não ter existido ou ter seguido por outros caminhos, já que ela é uma combinação da “parceria” de Francisco Alves com os sambistas do Estácio e a evolução do sistema de gravação de áudio, nesse momento já na fase elétrica, e que possibilita a gravação de instrumentos de percussão e de cantores com menor volume de voz.
Portanto, percebe-se hoje, que quando do surgimento do “samba moderno”, a atividade de compositor de samba, ainda não era reconhecida como uma atividade artística, e nem o samba era tido como uma obra de arte, os sambistas e compositores de samba eram visto como desordeiros e malandros, muitos eram descendentes diretos escravos, que após a abolição não tiveram sua mão-de-obra reconhecida, e sim trocada pela do emigrante estrangeiro em boa parte do país. Essa condição de inferioridade na pirâmide social ficou evidente na relação capitalista onde o poder econômico do branco continuava subjugar o artista negro, que apesar disso ainda via nessa relação alguma perspectiva de êxito e a possibilidade de sucesso.
A compra e a venda de sambas eram “normais”, constituindo-se uma prática paralela [...] ao modo de produção econômica e à cultura dominante. Se for examinar com os instrumentos conceituais da economia política, essa prática será um puro índice de exploração do negro pelo branco. E isso realmente ocorria. Mas do ponto de vista da comunidade negra, tal prática era admissível, por não ser institucionalmente lesiva. (SODRÉ, 1998, p. 57).
O “samba moderno” originou-se de misturas e variações de etilos musicais a maioria oriunda da África, que eram tocados principalmente nos terreiros de candomblé, foi se transformando, até ganhar o status de “estilo musical” ou de “gênero musical” no final da década de 1920, com características próprias, como diz Tinhorão:
O samba-canção, também conhecido como samba de meio de ano, foi criação de compositores semi-eruditos ligados ao teatro de revista do Rio de Janeiro, e surgiu pelo correr do ano de 1928, ao mesmo tempo em que, na área dos compositores das camadas mais baixas, o samba de carnaval acaba de fixar o ritmo batucado que o diferençava de uma vez por todas do maxixe. (TINHORÃO, 1974, p. 153).
Esse ritmo batucado a que se refere Tinhorão, o chamado “samba moderno”, feito pelos compositores do Estácio, que provavelmente pela necessidade de sambarem em cortejo, assim como faziam os ranchos, desenvolveram um samba mais rápido e semelhante à marcha, o embrião do samba-de-enredo, dos nossos dias. Aja vista que a primeira escola de samba a “Deixa falar”, nasce de um rancho do mesmo nome. É sobre o nascimento do samba no Estácio que fala o jornalista Francisco Duarte:
“Ponto de reuniões, de noitadas de samba de partido-alto, violão, prato e faca, palma-de-mão e muita cantoria improvisada, brigas e criação de sambas” era assim o Largo do Estácio, à época de criação do rancho Deixa Falar”. “Ali entre 1923 e 1930 [...] entre o Largo do Estácio de Sá, no Beco D. Paulina, subindo a Rua Maia de Lacerda ou decida de Pereira Franco rumo à zona de meretrício, nasceu o samba carioca, o samba urbano que hoje conhecemos” (apud, Lopes, 1992 p.15).
Apesar da competência do negro na produção dos sambas, ele tinha a limitação no que diz respeito a uma cultura musical formal capaz de satisfazer às exigências da industria fonográfica, já que esta tendia a se adequar ao gosto das classes altas, consumidoras de disco, portanto, esta indústria, estava subordinada a um padrão de musicalidade vindo de outros países, principalmente no que se refere à orquestração, e nesse campo o negro não tinha lugar. Os maestros e os instrumentistas capazes de ler partituras eram brancos, até que um dos antigos freqüentadores da casa de Tia Ciata, se destaca por sua erudição e virtuosismo musical, e rompe com essa noção: Pixinguinha.
O acesso ao mercado fonográfico proporcionado por Francisco Alves aos compositores do Estácio teve seu preço, e que a princípio não foi dos mais nobres. O cantor que já era um renome nacional condicionou à gravação dos sambas a venda dos mesmos, de modo que em alguns casos o nome do autor nem se quer constava no selo do disco, como diz o próprio Ismael Silva:
Um dia, doente, num hospital, fui procurado por Alcebíades Barcelos. Perguntou-me se eu queria vender o samba ao Chico Viola7. (apelido de Francisco Alves) Cem mil réis era o que ele oferecia. Aceitei depressa e o samba ficou sendo propriedade dele, apareceu com meu nome. Depois vendi “Amor de Malandro”, por quinhentos mil réis, mas dessa vez eu não figurei na gravação como autor. Fiquei zangado é claro. (SODRÉ, 1998, p. 94).
Mas essa passa a ser uma nova realidade vivida pelos compositores de samba, em sua grande maioria negra e de classe baixa que viam da possibilidade de ter um samba seu ser gravado por um cantor de sucesso, tendo assim alguma expectativa de ascensão social.
Porém, vai ficar bem evidente que se não fosse à aproximação de Francisco Alves dos compositores do Estácio, essa segunda fase do samba, o dito “samba moderno”, poderia não ter existido ou ter seguido por outros caminhos, já que ela é uma combinação da “parceria” de Francisco Alves com os sambistas do Estácio e a evolução do sistema de gravação de áudio, nesse momento já na fase elétrica, e que possibilita a gravação de instrumentos de percussão e de cantores com menor volume de voz.
Portanto, percebe-se hoje, que quando do surgimento do “samba moderno”, a atividade de compositor de samba, ainda não era reconhecida como uma atividade artística, e nem o samba era tido como uma obra de arte, os sambistas e compositores de samba eram visto como desordeiros e malandros, muitos eram descendentes diretos escravos, que após a abolição não tiveram sua mão-de-obra reconhecida, e sim trocada pela do emigrante estrangeiro em boa parte do país. Essa condição de inferioridade na pirâmide social ficou evidente na relação capitalista onde o poder econômico do branco continuava subjugar o artista negro, que apesar disso ainda via nessa relação alguma perspectiva de êxito e a possibilidade de sucesso.
A compra e a venda de sambas eram “normais”, constituindo-se uma prática paralela [...] ao modo de produção econômica e à cultura dominante. Se for examinar com os instrumentos conceituais da economia política, essa prática será um puro índice de exploração do negro pelo branco. E isso realmente ocorria. Mas do ponto de vista da comunidade negra, tal prática era admissível, por não ser institucionalmente lesiva. (SODRÉ, 1998, p. 57).
O “samba moderno” originou-se de misturas e variações de etilos musicais a maioria oriunda da África, que eram tocados principalmente nos terreiros de candomblé, foi se transformando, até ganhar o status de “estilo musical” ou de “gênero musical” no final da década de 1920, com características próprias, como diz Tinhorão:
O samba-canção, também conhecido como samba de meio de ano, foi criação de compositores semi-eruditos ligados ao teatro de revista do Rio de Janeiro, e surgiu pelo correr do ano de 1928, ao mesmo tempo em que, na área dos compositores das camadas mais baixas, o samba de carnaval acaba de fixar o ritmo batucado que o diferençava de uma vez por todas do maxixe. (TINHORÃO, 1974, p. 153).
Esse ritmo batucado a que se refere Tinhorão, o chamado “samba moderno”, feito pelos compositores do Estácio, que provavelmente pela necessidade de sambarem em cortejo, assim como faziam os ranchos, desenvolveram um samba mais rápido e semelhante à marcha, o embrião do samba-de-enredo, dos nossos dias. Aja vista que a primeira escola de samba a “Deixa falar”, nasce de um rancho do mesmo nome. É sobre o nascimento do samba no Estácio que fala o jornalista Francisco Duarte:
“Ponto de reuniões, de noitadas de samba de partido-alto, violão, prato e faca, palma-de-mão e muita cantoria improvisada, brigas e criação de sambas” era assim o Largo do Estácio, à época de criação do rancho Deixa Falar”. “Ali entre 1923 e 1930 [...] entre o Largo do Estácio de Sá, no Beco D. Paulina, subindo a Rua Maia de Lacerda ou decida de Pereira Franco rumo à zona de meretrício, nasceu o samba carioca, o samba urbano que hoje conhecemos” (apud, Lopes, 1992 p.15).
Apesar da competência do negro na produção dos sambas, ele tinha a limitação no que diz respeito a uma cultura musical formal capaz de satisfazer às exigências da industria fonográfica, já que esta tendia a se adequar ao gosto das classes altas, consumidoras de disco, portanto, esta indústria, estava subordinada a um padrão de musicalidade vindo de outros países, principalmente no que se refere à orquestração, e nesse campo o negro não tinha lugar. Os maestros e os instrumentistas capazes de ler partituras eram brancos, até que um dos antigos freqüentadores da casa de Tia Ciata, se destaca por sua erudição e virtuosismo musical, e rompe com essa noção: Pixinguinha.
PIXINGUINHA, UMA GRATA EXCEÇÃO.
Ernani Maller
"Digo, por experiência própria, que uma boa audição de Pixinguinha é capaz de curar doenças. Sempre que estou triste ou angustiado, me acomodo na poltrona, escuto seus choros e meu estado de espírito se modifica completamente”, Paulinho de Viola. (BRAGA, 1995, P. 8).
Alfredo da Rocha Viana Júnior, o Pixinguinha9, (23/04/1898~17/02/1973), ascende socialmente por um viés muito improvável ao negro do início do século XX: a erudição musical. Não que tenha enriquecido financeiramente, como disse Hemínio Belo de Carvalho no prefácio de O Lendário Pixinguinha: “... se vivesse em outro país qualquer que não do terceiro mundo, por certo não morreria tão pobrezinho como morreu”. Na verdade Pixinguinha viveu uma vida simples, mas de muitos reconhecimentos e respeito por amigos e admiradores, como demonstrou Vinícius de Moraes no “Samba da Benção”, “À benção, Pixinguinha, tu que choraste na flauta todas as minhas mágoas de amor”, em uma inusitada homenagem que recebeu dos amigos 1963, no Bar Gouveia, na Travessa Ouvidor, local que considerava seu “escritório”, pois era freqüentador religiosamente de 2ª a 6ª, das 10 às 12 horas: uma cadeira cativa e uma placa de prata. (AFONSO, 1991, P. 94).
Silva, ao falar dos “sem futuros”, os afro-brasileiros das favelas e periferias, profetizados pelo compositor Nelson Sargento, que só poderiam ser salvos pelo futebol ou pela arte, cita o também compositor Hélio Turco: “Também as artes exercem essa função redentora: Aleijadinho, Caldas Barbosa, José Maurício Nunes Garcia, Machado de Assis, Lima Barreto, Pixinguinha, Cartola e tantos outros fizeram-se famosos por meio das mesmas” (2003, p. 9).
Pixinguinha começou a tocar cavaquinho aos nove anos, aos treze bombardino e logo em seguida ganhou uma flauta italiana do seu pai, que também tocava esse instrumento, aos dezessete fez seus primeiros arranjos para a Casa Faulhaber, e aos dezenove já gravava para a Casa Edson e aos vinte e três anos montou um grupo para atuar na sala de espera do Cine Palais, esse grupo mais tarde se tornaria os “8 Batutas” que nos anos de 1921 e 1922 atuaria com enorme sucesso na França no “Sheherazade”, patrocinados pelo milionário Arnaldo Guinles. (BRAGA,1995).
Por muitos anos teve um cargo de grande influência e que só poderia ser ocupado por alguém de muita competência: diretor-orquestrador da RCA Victor. Cargo que assumiu partir de 1929, na RCA Victor também atuava o grande maestro e compositor Radamés Gnattali, ali revolucionou a forma de fazer arranjos no Brasil, suas instrumentações suntuosas com clara influência americana, que iram predominar até a chegada da Bossa-Nova no ano de 1958, que partindo de uma noção de contracultura, passa a primar por arranjos mais comedidos.Pixinguinha, por ter nascido em uma família de classe média, teve acesso a uma boa formação musical, que aliada ao seu talento, rendeu-lhe notoriedade nacional e legaram ao Brasil mais de mil composições e uma marca indelével na história da nossa música através dos seus arranjos musicais.
sábado, 23 de janeiro de 2010
A SÍNCOPE FAZENDO A DIFERENÇA NO SAMBA
Ernani Maller
A síncope (também chamada de sincopa) é um diferencial do samba em relação a outros ritmos, ela causa a “descontinuação” da seqüência rítmica, rompe com a constância. E acontece, quando se desloca a acentuação, ou seja, uma nota que normalmente soaria em um tempo fraco é acentuada soando forte, provocando assim uma sensação de algo inesperado. Muniz Sodré em “Samba o dono do corpo” diz: “A síncope é uma alteração rítmica que consiste no prolongamento de um som de um tempo fraco num tempo forte” (1998, p.25). O uso da sincopa para Sodré também foi uma forma de resistência: “Era uma tática de falsa submissão: o negro acatava o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo desestabilizava, ritmicamente, através da síncopa ...” (Sodré 1998, p.25).
A aparição da síncope em ritmos como o samba e o jazz é reconhecidamente derivada dos ritmos africanos. “A presença da [síncope] nas Modinhas Anônimas do Brasil demonstram que, possivelmente, o Brasil foi a primeira colônia do Novo Mundo a desenvolver a síncope característica em seu contexto musical popular”, (Cansado, 1999, p.7). Seu uso no samba talvez possa explicar a preferência adquirida por esse estilo musical em relação às demais possibilidades, como: lundu, maxixe, polca e outros, como disse Donga: “Eu tinha conseguido abrir caminho para o samba. E esse logo se impôs com a sua característica essencial, que é o ritmo sincopado, distinguindo-se de parentes mais próximos, por exemplo, como a marcha” (Sodré, 1998, p.74). De certo, a sincope rompe com a mesmice e a sensação de monotonia. Ainda Sodré: o último, o tempo fraco, que parece faltar, mas que instiga o ouvinte a dançar, a completar a ausência da marcação com o corpo. (Pio, 2007, p.1)
A SÍNCOPE DO CORPO: “O FAZ QUE VAI, MAS NÃO VAI”.
É com o samba-no-pé que podemos visualizar a versão corporal da síncope, é bem verdade que para isso é preciso que o samba seja dançado por um bom sambista. Só ele pode nos mostrar toda a ginga que o ritmo propicia, como diz Nei Lopes, ao enumerar os princípios básico para seu Grêmio Recreativo:
“Samba mesmo é um passo curto, é drible de corpo, “no faz que vai, mais não vai” é no passo largo cheio de ginga, é no balançar dos braços, é no girar constante da cabeça, mostrando um sorriso contagiante, uma combinação improvisada de movimentos que ninguém do mundo consegue fazer igual ao brasileiro”. (LOPES, 2008, p.2)
A síncope corporal é o blefe do sambista, é quando ele frustra a expectativa do observador que espera por certo movimento, que não vem, a não ser em um tempo posterior. É nesse momento que o sambista demonstra sua incrível percepção rítmica, ao manter a cadência e todo um jogo de cena malemolente, próprio desse estilo de dança e música, o samba urbano carioca.
Há hoje em dia porém, uma nova ordem causada pela “industria do samba”, com isso, a arte de “fazer-no-pé”, se perdeu no meio do imenso espetáculo que se tornaram os desfiles das grandes escolas de samba. O triste desabafo de Floriano Carvalho, no artigo de Juliano Domingues, retrata bem esse novo momento, em que a arte corporal e o talento individual do sambista deixa de ter seu valor reconhecido:
“Infelizmente o samba de enredo está descaracterizado, impuseram uma marcação alucinada que impede qualquer passista de “dizer no pé”, daí guardarmos como exemplos os sambas que marcaram época e são cantados até hoje. A ganância pela venda exagerada de fantasias incharam as alas, que para completarem o tempo exigido no desfile tem que marchar, numa triste demonstração de subserviência à indústria do chamado “show business”, totalmente alheias ao aspecto cultural, desrespeitando o trabalho dos grandes sambistas do Rio de Janeiro. Salvemos o samba de terreiro e o partido alto, a hora é essa”. (DOMINGUES, 2007, P.3)
É bem verdade, que a síncope está presente em outros estilos musicais, porém, de forma secundária, uma opção, que pode ser usada ou não. Mas no samba, ela é a própria razão de ser do ritmo, ela permeia a música o tempo inteiro. Ela torna cada interpretação únicas, a música não é tocada duas vezes da mesma forma, e é esse “descompromisso” com a mesmice que caracteriza esse estilo, que com todos os méritos se tornou o símbolo musical do Brasil, o Samba Urbano Carioca. Imune ao modismo, imune ao tempo.
SÍNCOPE: UMA EXPRESSÃO ATEMPORAL
Na segunda metade da década de 1950, uma nova experiência baseada na síncope mudou para sempre a música brasileira, tornando-a conhecida mundialmente: a Bossa-Nova. João Gilberto começou a fazer observações e experimentos a partir da forma de interpretar de alguns músicos, como diz Rui Castro: “A batida de Johnny Alf ao piano e, principalmente, a de Donato ao acordeão – como ficaria aquilo no violão?...” (Castro, 1990, p. 147). João percebe que poderia criar uma nova base rítmica, a partir da forma sincopada de tocar de Alf e Donato, e é isso que acontece. Depois de passar alguns meses recluso em Diamantina, onde com muita disciplina levou a cabo seus estudos rítmicos, volta ao Rio de Janeiro com o que ficaria conhecida como “a batida da Bossa-Nova”, que iria surpreender a todos por sua modernidade e descontração, como diz Castro: “O susto de Tom (Jobim) ficou reservado para o momento em que João Gilberto pegou o violão e o apresentou a “Bim-bom” e “Hô-ba-la-lá” (Castro, 1990, p.167). Tom percebeu imediatamente que estava ali a saída para a monotonia em que a música brasileira passava naquele momento. “Aquela batida era uma coisa nova, produzia um tipo de ritmo que cabiam todas as liberdades que quisesse tomar”, (idem).
A síncope é atemporal, não envelhece, é incólume aos modismos. Nas suas infinitas possibilidades, no seu “faz que bate mas não bate”1, estará sempre “incomodando” os adeptos da mesmice, estará sempre despertando no corpo, a vontade de dançar. Se a síncope tivesse que ter outro nome, este certamente seria: liberdade.
SÍNCOPE, O DUPLO DESENHO BANTO
Tania Maria Lopes Cansado, conclui que “rítmica Brasileira é a única que apresenta repetidas seqüências da “síncope característica”7 (terminologia usada pela pesquisadora referindo - se ao ritmo sincopado composto por semicolcheia/ colcheia/ semicolcheia) como fator comum. Este duplo desenho rítmico da síncope só foi encontrado na time-line Angolana, quando transformado em notação musical tradicional”8. (notação musical é a escrita da música em notas numa partitura).
Apesar da maior influência dos povos yorubás nos terreiros brasileiros, em termos de ritmos, esses povos influenciaram mais os norte-americanos e os cubanos, “o desenvolvimento da “síncope característica” na música popular de Cuba (Contradanças e Habaneras) e dos Estados Unidos (Ragtime) foi originado da música rítmica das tribos Yorubas e Dahomeans, negros remanescentes da Costa Oeste da África” (SILVA). Porém, “no Brasil, em especial nas colônias do Rio de Janeiro, o mesmo ritmo foi originado da música das tribos Bantus da região de Angola/Zaire, remanescentes da África Central” (SILVA).
Na virada do século XX, em conseqüência da abolição da escravatura e da decadência da cultura do café no Vale do Paraíba, ocorreu um deslocamento expressivo de negros Bantos daquelas fazendas para a cidade do Rio de Janeiro, em busca de trabalho para sobreviver. Destituídos de qualquer espécie de bens [...] chegavam por terra, pela estrada e ferro, e se localizavam nos subúrbios, tendo como núcleo as estações de Madureira e Santa Clara. (SILVA, 2003, p.15).
O que pode ser na verdade a explicação para o nascimento do “samba urbano” carioca utilizando-se da síncope nos moldes das tribos Bantus nos terreiros do Rio de Janeiro.
Os yorubás oriundos da Bahia chegaram primeiro ao Rio de Janeiro, por volta de 1870, estabelecendo-se principalmente na região portuária já que geralmente chegavam em navios. Essa etnia fundou os primeiros ranchos, mas também exerceu grande influência na formatação do samba, é nesse grupo étnico que também vai surgir o primeiro samba de sucesso gravado no Brasil.
A síncope (também chamada de sincopa) é um diferencial do samba em relação a outros ritmos, ela causa a “descontinuação” da seqüência rítmica, rompe com a constância. E acontece, quando se desloca a acentuação, ou seja, uma nota que normalmente soaria em um tempo fraco é acentuada soando forte, provocando assim uma sensação de algo inesperado. Muniz Sodré em “Samba o dono do corpo” diz: “A síncope é uma alteração rítmica que consiste no prolongamento de um som de um tempo fraco num tempo forte” (1998, p.25). O uso da sincopa para Sodré também foi uma forma de resistência: “Era uma tática de falsa submissão: o negro acatava o sistema tonal europeu, mas ao mesmo tempo desestabilizava, ritmicamente, através da síncopa ...” (Sodré 1998, p.25).
A aparição da síncope em ritmos como o samba e o jazz é reconhecidamente derivada dos ritmos africanos. “A presença da [síncope] nas Modinhas Anônimas do Brasil demonstram que, possivelmente, o Brasil foi a primeira colônia do Novo Mundo a desenvolver a síncope característica em seu contexto musical popular”, (Cansado, 1999, p.7). Seu uso no samba talvez possa explicar a preferência adquirida por esse estilo musical em relação às demais possibilidades, como: lundu, maxixe, polca e outros, como disse Donga: “Eu tinha conseguido abrir caminho para o samba. E esse logo se impôs com a sua característica essencial, que é o ritmo sincopado, distinguindo-se de parentes mais próximos, por exemplo, como a marcha” (Sodré, 1998, p.74). De certo, a sincope rompe com a mesmice e a sensação de monotonia. Ainda Sodré: o último, o tempo fraco, que parece faltar, mas que instiga o ouvinte a dançar, a completar a ausência da marcação com o corpo. (Pio, 2007, p.1)
A SÍNCOPE DO CORPO: “O FAZ QUE VAI, MAS NÃO VAI”.
É com o samba-no-pé que podemos visualizar a versão corporal da síncope, é bem verdade que para isso é preciso que o samba seja dançado por um bom sambista. Só ele pode nos mostrar toda a ginga que o ritmo propicia, como diz Nei Lopes, ao enumerar os princípios básico para seu Grêmio Recreativo:
“Samba mesmo é um passo curto, é drible de corpo, “no faz que vai, mais não vai” é no passo largo cheio de ginga, é no balançar dos braços, é no girar constante da cabeça, mostrando um sorriso contagiante, uma combinação improvisada de movimentos que ninguém do mundo consegue fazer igual ao brasileiro”. (LOPES, 2008, p.2)
A síncope corporal é o blefe do sambista, é quando ele frustra a expectativa do observador que espera por certo movimento, que não vem, a não ser em um tempo posterior. É nesse momento que o sambista demonstra sua incrível percepção rítmica, ao manter a cadência e todo um jogo de cena malemolente, próprio desse estilo de dança e música, o samba urbano carioca.
Há hoje em dia porém, uma nova ordem causada pela “industria do samba”, com isso, a arte de “fazer-no-pé”, se perdeu no meio do imenso espetáculo que se tornaram os desfiles das grandes escolas de samba. O triste desabafo de Floriano Carvalho, no artigo de Juliano Domingues, retrata bem esse novo momento, em que a arte corporal e o talento individual do sambista deixa de ter seu valor reconhecido:
“Infelizmente o samba de enredo está descaracterizado, impuseram uma marcação alucinada que impede qualquer passista de “dizer no pé”, daí guardarmos como exemplos os sambas que marcaram época e são cantados até hoje. A ganância pela venda exagerada de fantasias incharam as alas, que para completarem o tempo exigido no desfile tem que marchar, numa triste demonstração de subserviência à indústria do chamado “show business”, totalmente alheias ao aspecto cultural, desrespeitando o trabalho dos grandes sambistas do Rio de Janeiro. Salvemos o samba de terreiro e o partido alto, a hora é essa”. (DOMINGUES, 2007, P.3)
É bem verdade, que a síncope está presente em outros estilos musicais, porém, de forma secundária, uma opção, que pode ser usada ou não. Mas no samba, ela é a própria razão de ser do ritmo, ela permeia a música o tempo inteiro. Ela torna cada interpretação únicas, a música não é tocada duas vezes da mesma forma, e é esse “descompromisso” com a mesmice que caracteriza esse estilo, que com todos os méritos se tornou o símbolo musical do Brasil, o Samba Urbano Carioca. Imune ao modismo, imune ao tempo.
SÍNCOPE: UMA EXPRESSÃO ATEMPORAL
Na segunda metade da década de 1950, uma nova experiência baseada na síncope mudou para sempre a música brasileira, tornando-a conhecida mundialmente: a Bossa-Nova. João Gilberto começou a fazer observações e experimentos a partir da forma de interpretar de alguns músicos, como diz Rui Castro: “A batida de Johnny Alf ao piano e, principalmente, a de Donato ao acordeão – como ficaria aquilo no violão?...” (Castro, 1990, p. 147). João percebe que poderia criar uma nova base rítmica, a partir da forma sincopada de tocar de Alf e Donato, e é isso que acontece. Depois de passar alguns meses recluso em Diamantina, onde com muita disciplina levou a cabo seus estudos rítmicos, volta ao Rio de Janeiro com o que ficaria conhecida como “a batida da Bossa-Nova”, que iria surpreender a todos por sua modernidade e descontração, como diz Castro: “O susto de Tom (Jobim) ficou reservado para o momento em que João Gilberto pegou o violão e o apresentou a “Bim-bom” e “Hô-ba-la-lá” (Castro, 1990, p.167). Tom percebeu imediatamente que estava ali a saída para a monotonia em que a música brasileira passava naquele momento. “Aquela batida era uma coisa nova, produzia um tipo de ritmo que cabiam todas as liberdades que quisesse tomar”, (idem).
A síncope é atemporal, não envelhece, é incólume aos modismos. Nas suas infinitas possibilidades, no seu “faz que bate mas não bate”1, estará sempre “incomodando” os adeptos da mesmice, estará sempre despertando no corpo, a vontade de dançar. Se a síncope tivesse que ter outro nome, este certamente seria: liberdade.
SÍNCOPE, O DUPLO DESENHO BANTO
Tania Maria Lopes Cansado, conclui que “rítmica Brasileira é a única que apresenta repetidas seqüências da “síncope característica”7 (terminologia usada pela pesquisadora referindo - se ao ritmo sincopado composto por semicolcheia/ colcheia/ semicolcheia) como fator comum. Este duplo desenho rítmico da síncope só foi encontrado na time-line Angolana, quando transformado em notação musical tradicional”8. (notação musical é a escrita da música em notas numa partitura).
Apesar da maior influência dos povos yorubás nos terreiros brasileiros, em termos de ritmos, esses povos influenciaram mais os norte-americanos e os cubanos, “o desenvolvimento da “síncope característica” na música popular de Cuba (Contradanças e Habaneras) e dos Estados Unidos (Ragtime) foi originado da música rítmica das tribos Yorubas e Dahomeans, negros remanescentes da Costa Oeste da África” (SILVA). Porém, “no Brasil, em especial nas colônias do Rio de Janeiro, o mesmo ritmo foi originado da música das tribos Bantus da região de Angola/Zaire, remanescentes da África Central” (SILVA).
Na virada do século XX, em conseqüência da abolição da escravatura e da decadência da cultura do café no Vale do Paraíba, ocorreu um deslocamento expressivo de negros Bantos daquelas fazendas para a cidade do Rio de Janeiro, em busca de trabalho para sobreviver. Destituídos de qualquer espécie de bens [...] chegavam por terra, pela estrada e ferro, e se localizavam nos subúrbios, tendo como núcleo as estações de Madureira e Santa Clara. (SILVA, 2003, p.15).
O que pode ser na verdade a explicação para o nascimento do “samba urbano” carioca utilizando-se da síncope nos moldes das tribos Bantus nos terreiros do Rio de Janeiro.
Os yorubás oriundos da Bahia chegaram primeiro ao Rio de Janeiro, por volta de 1870, estabelecendo-se principalmente na região portuária já que geralmente chegavam em navios. Essa etnia fundou os primeiros ranchos, mas também exerceu grande influência na formatação do samba, é nesse grupo étnico que também vai surgir o primeiro samba de sucesso gravado no Brasil.
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