domingo, 24 de janeiro de 2010

O “SAMBA MODERNO” E O PREÇO DA ASCENSÃO SOCIAL DO NEGRO

Ernani Maller

O acesso ao mercado fonográfico proporcionado por Francisco Alves aos compositores do Estácio teve seu preço, e que a princípio não foi dos mais nobres. O cantor que já era um renome nacional condicionou à gravação dos sambas a venda dos mesmos, de modo que em alguns casos o nome do autor nem se quer constava no selo do disco, como diz o próprio Ismael Silva:

Um dia, doente, num hospital, fui procurado por Alcebíades Barcelos. Perguntou-me se eu queria vender o samba ao Chico Viola7. (apelido de Francisco Alves) Cem mil réis era o que ele oferecia. Aceitei depressa e o samba ficou sendo propriedade dele, apareceu com meu nome. Depois vendi “Amor de Malandro”, por quinhentos mil réis, mas dessa vez eu não figurei na gravação como autor. Fiquei zangado é claro. (SODRÉ, 1998, p. 94).

Mas essa passa a ser uma nova realidade vivida pelos compositores de samba, em sua grande maioria negra e de classe baixa que viam da possibilidade de ter um samba seu ser gravado por um cantor de sucesso, tendo assim alguma expectativa de ascensão social.
Porém, vai ficar bem evidente que se não fosse à aproximação de Francisco Alves dos compositores do Estácio, essa segunda fase do samba, o dito “samba moderno”, poderia não ter existido ou ter seguido por outros caminhos, já que ela é uma combinação da “parceria” de Francisco Alves com os sambistas do Estácio e a evolução do sistema de gravação de áudio, nesse momento já na fase elétrica, e que possibilita a gravação de instrumentos de percussão e de cantores com menor volume de voz.
Portanto, percebe-se hoje, que quando do surgimento do “samba moderno”, a atividade de compositor de samba, ainda não era reconhecida como uma atividade artística, e nem o samba era tido como uma obra de arte, os sambistas e compositores de samba eram visto como desordeiros e malandros, muitos eram descendentes diretos escravos, que após a abolição não tiveram sua mão-de-obra reconhecida, e sim trocada pela do emigrante estrangeiro em boa parte do país. Essa condição de inferioridade na pirâmide social ficou evidente na relação capitalista onde o poder econômico do branco continuava subjugar o artista negro, que apesar disso ainda via nessa relação alguma perspectiva de êxito e a possibilidade de sucesso.
A compra e a venda de sambas eram “normais”, constituindo-se uma prática paralela [...] ao modo de produção econômica e à cultura dominante. Se for examinar com os instrumentos conceituais da economia política, essa prática será um puro índice de exploração do negro pelo branco. E isso realmente ocorria. Mas do ponto de vista da comunidade negra, tal prática era admissível, por não ser institucionalmente lesiva. (SODRÉ, 1998, p. 57).

O “samba moderno” originou-se de misturas e variações de etilos musicais a maioria oriunda da África, que eram tocados principalmente nos terreiros de candomblé, foi se transformando, até ganhar o status de “estilo musical” ou de “gênero musical” no final da década de 1920, com características próprias, como diz Tinhorão:
O samba-canção, também conhecido como samba de meio de ano, foi criação de compositores semi-eruditos ligados ao teatro de revista do Rio de Janeiro, e surgiu pelo correr do ano de 1928, ao mesmo tempo em que, na área dos compositores das camadas mais baixas, o samba de carnaval acaba de fixar o ritmo batucado que o diferençava de uma vez por todas do maxixe. (TINHORÃO, 1974, p. 153).

Esse ritmo batucado a que se refere Tinhorão, o chamado “samba moderno”, feito pelos compositores do Estácio, que provavelmente pela necessidade de sambarem em cortejo, assim como faziam os ranchos, desenvolveram um samba mais rápido e semelhante à marcha, o embrião do samba-de-enredo, dos nossos dias. Aja vista que a primeira escola de samba a “Deixa falar”, nasce de um rancho do mesmo nome. É sobre o nascimento do samba no Estácio que fala o jornalista Francisco Duarte:
“Ponto de reuniões, de noitadas de samba de partido-alto, violão, prato e faca, palma-de-mão e muita cantoria improvisada, brigas e criação de sambas” era assim o Largo do Estácio, à época de criação do rancho Deixa Falar”. “Ali entre 1923 e 1930 [...] entre o Largo do Estácio de Sá, no Beco D. Paulina, subindo a Rua Maia de Lacerda ou decida de Pereira Franco rumo à zona de meretrício, nasceu o samba carioca, o samba urbano que hoje conhecemos” (apud, Lopes, 1992 p.15).

Apesar da competência do negro na produção dos sambas, ele tinha a limitação no que diz respeito a uma cultura musical formal capaz de satisfazer às exigências da industria fonográfica, já que esta tendia a se adequar ao gosto das classes altas, consumidoras de disco, portanto, esta indústria, estava subordinada a um padrão de musicalidade vindo de outros países, principalmente no que se refere à orquestração, e nesse campo o negro não tinha lugar. Os maestros e os instrumentistas capazes de ler partituras eram brancos, até que um dos antigos freqüentadores da casa de Tia Ciata, se destaca por sua erudição e virtuosismo musical, e rompe com essa noção: Pixinguinha.

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