sexta-feira, 9 de dezembro de 2011

ESTÃO POR AÍ



Ernani Maller

As dores que eu causei estão por aí
Os corpos que eu amei estão por aí
As magoas que eu não guardei
Os sonhos que não encontrei
Feridas das qual só eu sei estão por aí

Os ventos que levam segredos estão por aí
Canções de ninar nossos medos estão por aí
O dia repleto de azul
Saudades em bando pro sul
Distantes do meu olho nu estão por aí

Os prantos desperdiçados estão por aí
As súplicas dos desesperados estão por aí
Os lábios repletos de sim
Os corpos que esperam por mim
Colombinas sem seus Arlequins estão por aí

sábado, 15 de outubro de 2011

A PALAVRA



Ernani Maller

A palavra é a matéria prima do escritor,
ela é maleável, sujeita-se aos caprichos do criador.
Mas também se impõem,
em sua ampla diversidade de interpretações.
A palavra morre, cai em desuso, mas também ressuscita.
Idiomas se extinguem,
levando consigo não somente palavras, mas formas de pensar.
Palavras que adjetivam o belo, como: a flôr, a borboleta
e principalmente a mulher.
São obrigatóriamente poéticas, assim como o é,
a palavra que da nome à “lembrança triste”,
um previlégio do idioma português: saudade.
Ao contrário da fotografia, que é o que se vê,
a palavra, é o que se imaginar ser,
ela da campo ao pensamento, asas à imaginação.
Na descrição de uma cena, cada leitor,
com suas experiências de vida, imaginará sua própria cena,
isso torna a palavra infinita, sem limites.
Pela palavra passa o conhecimento, a sabedoria, a erudição.
Sem a palavra não seriamos diferentes dos animais.
Ela distingue povos, classes socias,
profissionais liberais, com seus mais variados discursos,
é o poder das palavras, as palavras do poder.
Quantos livros? Quantos poetas? Quantas religiões?
Filosofia, história, tudo baseado na palavra,
que o ser humano manipula, em um inesgotável quebra-cabeça.
Através da palavra, o ser humano vai se forjando, vai se recriando,
portanto, não acredite se alguêm lhe disser:
“palavras são palavras, nada mais do que palavras”.

O MAESTRO CRONENBERG



Ernani Maller

Terminei um show musical em um clube na cidade de Teresópolis, estado do Rio de Janeiro, e tive a sensação de ter feito uma boa apresentação, era uma “Noite de Queijos e Vinhos”, as pessoas faziam questão de vir me cumprimentar e mostrar seus contentamentos com a minha atuação. Um admirador mais entusiasmado me pediu que mostrasse algumas músicas de minha autoria ao piano, o que me prontifiquei a fazer imediatamente. Nos primeiros acordes uma senhora visivelmente embriagada me interrompeu e perguntou:
_ Ele é meu primo.
_ O senhor conhece o maestro Cronenberg?
E eu respondi _ Não conheço não senhora.
E ela com a voz arrastada, própria das pessoas alcoolizadas, disse:
_ Ah! Que legal. _ Eu falei.
Reiniciei a música interrompida, que foi acompanhada com muita animação por um pequeno grupo de pessoas que rodeou o piano, mas assim que terminei a interpretação a mesma senhora perguntou:
_ O senhor conhece o maestro Cronenberg?
Mais uma vez respondi: _ Não, não conheço.
E ela falou:
_ Ele é meu primo.
_ Que bom.
Foi quando o tal admirador entusiasmado perguntou:
_ Você me acompanha em uma canção? E eu disse: _ Tudo bem.
Mal o cidadão começou a cantar sinto alguém me tocar no ombro, quando eu me viro para ver quem era, a mesma pergunta:
_ O senhor conhece o maestro Cronenberg?
Com muita educação e paciência, respondi pela terceira vez:
_ Não, minha senhora, eu não conheço.
_ Ele é meu primo.
_ Que ótimo.
Mostrei mas algumas músicas de minha autoria, outras pessoas também cantaram até que resolvi me despedir, quando do meu lado ouço mais uma vez a indagação:
_ O senhor conhece o maestro Cronenberg?
Desta vez eu falei:
_ Já sei, ele é seu primo.
Abrindo um grande sorriso, ela falou para que todos ouvissem:
_ Viu? Não disse que ele conhecia?

sábado, 1 de outubro de 2011

SABERÁS QUE É NATAL


Ernani Maller

Assim que brotar
A lua dos pinheiros crispantes
Assim que soar
Um sino distante

Com cantigas singelas
De inocência angelical
Mesmo que não te digam
Saberás que é natal

Assim que a gota salgada
Correr tua face tranquila
Assim que dor
Se fizer arrependida

Mesmo que sol não venha
E que o desgosto seja fatal
Porém, pela paz devastadora
Saberás que é natal

Mesmo que o silêncio vitalício
Lhe ensurdeça por fim
Que o deserto da alma
Encubra teu jardim

Poderás soluçar
Num sorriso passional
Mas com toda confiança
Saberás que é natal

A DOR DE DENTE


Ernani Maller

Sandoval era balconista de uma pequena venda na localidade de Rio Negro, muito simpático e bem quisto, moço despachado, sério e de total confiança do patrão.
Certa feita, Sandoval foi acometido de uma terrível dor de dente, alguém logo recomendou um analgésico, mas depois de algum tempo verifico-se a ineficácia do remédio. Algumas simpatias também foram tentadas, como a dor aumentava a cada instante, percebeu - se que uma atitude radical deveria ser tomada, um dentista deveria ser consultado. Sandoval tremeu diante da possibilidade de ter que encarar aquele que por tantos anos evitara. Mas uma notícia deu lhe um alívio íntimo, Dr. Heraldo, o único dentista da região estava viajando, e só voltaria em algumas semanas.
Até que Alípio, bebedor conhecido, que atendia também pelo carinhoso apelido de “Pudim de Cachaça”, deu uma solução para o dolorido problema:
_ Aqui em Rio Negro, só o Preto Velho Veval pra curar essa dor de dente.
Imediatamente o sofrido paciente foi colocado em uma carroça e conduzido até o bairro Pendura Saia, a poucos quarteirões de distância, logo chegaram ao destino.
O Preto Velho Veval morava em um barraco muito humilde. Já de idade bastante avançada, há muitos anos vivia sozinho, teve uma companheira, mas certo dia o abandonou sem justificativa e sem deixar notícia do seu paradeiro. Muitas curas eram atribuídas às suas rezas; tinha também a fama de ser um grande conhecedor de ervas, por isso era muito procurado, desde moças que queriam abortar e por muitos senhores em busca de cura para impotência sexual.
Sandoval já entrou no barraco gritando:
_ Ai, Preto Velho! Cure-me dessa terrível dor de dente. Este, porém, o desanimou.
_ Ah, Mizifio, Preto Velho não cura dor de dente não, isso é “trabáio” pra dentista.
_ Mas o dentista está viajando. Retrucou Sandoval. _ Vê o que o senhor pode fazer por mim.
Preto Velho então pensou, pensou, pensou e por fim falou: _ Curar a dor eu não posso, o que eu posso fazer é trocar a dor de lugar. Sandoval já um pouco esperançoso, perguntou:
_ Mas pra que lugar que a vai a dor?
_ Ah, Mizifio! Aí Preto Velho não sabe não, pode ir para qualquer lugar.
Sandoval que já estava cansado da tal dor de dente autorizou:
_ Pode fazer o trabalho, seja o que Deus quiser!
Preto Velho deu-lhe uma baforada de fumaça na cara de Sandoval, com um cheiro azedo, uma mistura de charuto e vinho, rodou Sandoval três vezes, fechou os olhos e fez algumas preces, murmurou algumas palavras que Sandoval não conseguia entender e disse por fim: _ Vá com Deus Mizifio.
Quando chegou de volta a venda, Sandoval percebeu com muita alegria que a dor de dente havia desaparecido. Agradeceu muito às pessoas que o ajudaram, inclusive “Pudim de Cachaça”, que teve a brilhante idéia da consulta com Preto Velho.
O feliz Sandoval voltou à rotina do seu trabalho, atendendo com presteza toda a freguesia, até que de repente sentiu uma fisgada muito forte no braço e em seguida outra fisgada ainda mais forte e uma dor insuportável foi tomando conta de todo o braço , era uma dor como ele jamais havia sentido, Sandoval deu um grito fortíssimo e começou a rolar no chão desesperadamente. Até que alguém gritou:
_ Leva de volta pro Preto Velho. E mas uma vez Sandoval é levado à casa do Preto Velho Veval. Desta vez Sandoval entra carregado gritando desesperadamente:
_ Ai! Preto Velho, que dor no meu braço, não agüento mais, faça alguma coisa, por favor.
_ Ah, Mizifio, isso é dor de dente no braço, é a pior das dores, e essa não tem cura não.
_ Não fala isso Preto Velho, deve haver algum remédio!
_ Não tem remédio não Mizifio, agora só suncê amputando esse braço e procurando um doto pra modi cuidar desse dente.

terça-feira, 30 de agosto de 2011

A DESCOBERTA DA VELA




Capa da 2ª edição

Ernani Maller

Há muitos e muitos anos, houve um outro Portugal, lá, nesse mesmo Portugal que nós conhecemos hoje. Havia um rei muito empreendedor - D. Manuel - que teve a a intuição de que havia muitas terras em além-mar, por isso decidiu investir na indústria naval para a conquista dos mares. Só que havia um porém, grandes sábios afirmavam que no fim do mundo o mar caía de repente, formando uma imensa cachoeira para o infinito. Mas a intuição do rei era muito forte e, com certeza, havia terras em “além-mar”. Mas como medir os riscos destas viagens, como saber a que distância estava do fim do mundo? Afinal, o rei não tinha o direito de pôr em risco a vida dos súditos que se aventurassem nessas empresas. Por fim, D. Manuel teve uma brilhante ideia, consultar um grande sábio português também chamado Manuel. O rei então pediu ao Sábio Manuel que resolvesse o dilema que o inquietava. Como seus homens poderiam singrar os mares sem o perigo de caírem na cachoeira do fim do mundo? Dias depois, o Sábio Manoel volta ao palácio real com a solução para o problema.

Era impressionante, o Sábio Manoel era realmente um gênio, sobre a grande mesa do salão nobre do palácio, abriu uma imensa planta, na qual se via uma embarcação moderníssima, de vários ângulos podiam ser observados detalhes minuciosamente desenhados pelo habilidoso Manoel, mas o que mais chamava a atenção eram as duas grandes asas. Sim, a embarcação era alada, a única maneira de não cair na cachoeira do fim do mundo, era voando.

Manoel explicava orgulhoso o funcionamento da embarcação, cada um dos duzentos remadores, (cem de cada lado) teria ao alcance das mãos uma manivela, que acionadas fariam com que as asas começassem a bater quando a embarcação se aproximasse da cachoeira do fim do mundo, alçando voo e, podendo assim, fazer uma curva de cento e oitenta graus, pousar novamente no mar e retornar a Portugal. Certamente, a embarcação ainda teria o auxílio das fortes correntezas que deveriam existir naquela região, que lhe aumentaria em muito a velocidade, pois seria necessário estar “a todo pano” para a decolagem.

Toda a explanação do Sábio Manoel foi acompanhada com grande interesse pela a corte e homens ligados à navegação, causando um grande furor em todo país. Portugal entrava em nova era, estava pronto para conquistar os mares.

Muitos séculos se passaram, vários reis se sucederam no governo de Portugal, até que um certo rei que também se chamava D. Manoel, mais precisamente D. Manoel CXXIII, que também gostava muito de navegação, ao observar de seu castelo, que ficava em uma colina, as embarcações atracadas no porto, percebeu que suas grandes asas ocupavam muito espaço, reduzindo assim o número de embarcações que ali podiam atracar, então assim como o seu ancestral, D. Manoel CXXIII também resolveu consultar um sábio de seu tempo, para solucionar o problema de espaço nos portos Portugueses.

No dia seguinte, nas primeiras horas da manhã, se apresenta no palácio o Sábio Manoel Joaquim, rapaz muito culto e grande conhecedor da navegação. Suas anotações sobre navegação iriam inspirar, milhares de anos depois, os fundadores da Escola de Sagres. Depois de explicar a Manoel Joaquim as suas preocupações, D.Manoel CXXIII estipulou o prazo de uma semana, para que o sábio lhe trouxesse uma solução para o caso.

E assim como combinado, Manoel Joaquim volta em uma semana com a solução: “Asas Retráteis”. Este era o nome do projeto desenvolvido por Manoel Joaquim. As asas que até então repousavam na posição horizontal, doravante deveriam permanecer na vertical, ocupando menos espaço no porto e também no interior das embarcações, D.Manoel CXXIII ficou maravilhado. Como poderia ser tão simples uma grande idéia. Então decretou, que desse dia em diante todas as asas das embarcações, deveriam permanecer na posição vertical.

Muita atividade se observou em Portugal por aqueles dias, para que as embarcações se adequassem às novas regras. Em todos os lugares se falava na nova invenção, e o termo “Asas Retráteis” passou a ser pronunciado por todas as pessoas, mesmo as que não tinham nenhum vínculo com a indústria naval.

Porém, algo de muito surpreendente se observou nas primeiras embarcações que passaram a usar o sistema de “Asas Retráteis”, como previu Sábio Manoel Joaquim, tiveram suas velocidades aumentaram espantosamente, as asas colocadas na posição vertical retinha o vento que impulsionava as embarcações com tanta força, a ponto de os remadores serem dispensados. Foi assim que se deu a descoberta da vela.

O Sábio Manoel Joaquim foi aclamado por todos e, usando de sua inteligência, aperfeiçoou ainda mais as asas (agora velas), de modo que pudessem ser manobradas de várias formas, podendo viajar inclusive contra o vento.

Aos poucos o medo das cachoeiras do fim do mundo foi sendo esquecido, com o tempo percebeu-se que o fim do mundo estava cada vez mais longe. De certo se distanciando, fugindo dos bravos navegadores portugueses.

Manoel Joaquim tornou-se uma celebridade nacional e gozou até o fim de seus dias do titulo de “O Inventor da Vela”.

Ainda hoje comemora - se em Portugal “O Dia da Vela”, dia 30 de fevereiro, e muitos portugueses dão a seus filhos os nomes de Manoel e Joaquim, não só pela beleza dos nomes, mas também, para homenagear e manter sempre viva a memória do grande gênio lusitano.

DEUSA DA SENSUALIDADE


Ernani Maller

Eu sou carmim de sol que deita no poente
Brilho de estrela cadente
Lua velha na sertão

Nebulosa a fervilhar em noite silente
Olho de água corrente
Que se arrasta no porão

Sou a verdade que arrebenta em qualquer cara
Pau-de-fogo, pau-de-arara
A voar na imensidão

Sou liberdade de um grito incontido
Dos passos do perseguido,
Sou o norte e a razão

Sou a que tem malemolência de serpente
Pra colher estrela cadente
No azul do teu olhar

Sou a que chora amando contra a corrente
Se eu sou tão indecente
É pra poder te despertar



quinta-feira, 21 de julho de 2011

FITA EM SÉRIE


Ernani Maller

Eram dois homens, um aparentando mais de setenta anos e o outro, bem mais moço, por volta dos vinte e cinco. Enquanto esperavam o ônibus conversavam, até que o mais moço perguntou:
_ Nesta cidade não tem cinema?
_ Havia um, mas já fechou ha mais de cinqüenta anos, eu assisti a muitos filmes aqui. Disse o mais velho.
_ Mas porque o cinema fechou?
_Eu não sei ao certo, mas houve uma ordem judicial, eles tinham muitas dívidas, não conseguiam pagar o aluguel do imóvel, enfim, parece que não eram bons administradores. O prédio ficou por algum tempo ainda com letreiro de cinema, o que nos dava a esperança que iria reabrir, mas acabou sendo transformado em um mercado.
_ Mas na cidade já não havia outros mercados?
_ Sim, havia vários mercados, nos tínhamos muitos outros lugares onde comprar mantimentos. Para mim o cinema era o verdadeiro alimento, alimento pra alma. Eu ia também para outras cidades somente para ir aos cinemas. Imagine você eu assisti a grandes filmes como “E o Vento Levou“, “O Ladrão de Bicicletas”, “O Garoto”, de Charles Chapelin, isso tudo há mais de cinqüenta anos, e até hoje me lembro de detalhes dos filmes, mas não me lembro o que comi naqueles dias, para você ver o quanto à arte alimenta, é o alimento da alma. _ Falou o velho, saudoso e satisfeito com tão filosófica colocação, e continuou.
_ O cinema é um mundo de sonhos, a gente viaja por mil lugares, mil fantasias, a gente ri, chora, se assusta, fica tenso, relaxa, enfim, foge um pouco dessa realidade do dia-a-dia.
_ É verdade. Respondeu o rapaz, já meio arrependido de ter puxado assunto sobre cinema.
_ Mas as minhas grandes paixões, eram as “fitas em série”.
_ E o que eram essas “fitas em série”?
_ Era como as novelas de hoje em dia na televisão, só que no cinema, cada dia passava uma parte do filme. Eu trabalhava na lavoura, mas sempre depois do trabalho vestia minha melhor roupa e vinha para o cinema, eu gostava de verdade, era sempre o primeiro a chegar. A última “fita em série” que eu assisti, e que estava sendo a melhor de todas, foi a “Maldição do Lobisomem”, pena que no dia mais importante da fita o cinema acabou.
_ E então o senhor não ficou sabendo o final? Perguntou o jovem, agora já começando a se interessar mais pela história do velho. Este olhou com nostalgia o horizonte e com voz triste e lastimosa falou:
_ É meu filho, eu não fiquei sabendo o final daquela fita. Já se passaram mais de cinqüenta anos, e até hoje eu não sei quem era o lobisomem.

sexta-feira, 24 de junho de 2011

A INSPIRAÇÃO É VIVA


Ernani Maller

Se alguém disser que a inspiração é viva, certamente algumas pessoas rirão, mas é justamente isso que passo a esclarecer agora. Confesso que com certo desconforto, mas juro, tudo que aqui eu relato é a mais pura verdade.
Eu ouvi aquelas cinco ou seis notas musicais, sem me preocupar em saber de onde vinham, era uma voz feminina, como dessas cantoras líricas, que tem a voz muito trabalhada. Vinha por trás da minha cabeça, e a pequena melodia era repetida insistentemente, até que eu comecei a cantarolar as notas e depois a elas a acrescentar outras notas. Em poucos minutos eu tinha uma melodia, na verdade, uma bela melodia, que futuramente ganharia uma letra e se tornaria uma linda canção.
Dias depois a voz voltou a soar em meus ouvidos, cantava desta vez uma melodia mais alegre, mais cheia de vida, já nas primeiras repetições eu decorei as notas. Como da primeira vez, aquela pequena melodia acrescentei outras notas musicais e mais uma bela música surgiu.
Foi assim que passei a conviver com a inspiração, compor com uma grande freqüência, porém, ainda sem entender de onde vinham aquelas melodias, como se elas saíssem realmente de dentro de mim, como é senso comum acreditar que a inspiração nasce dentro de cada um. Até que um dia a surpreendi. Eu havia virado o meu sofá, de forma que fiquei de frente para a janela, quando a inspiração entrou e começou a cantar às primeiras notas, deu com meus olhos observa-la. Ela ficou muito embaraçada e partiu sem me deixar nenhuma nova melodia e por vários dias deixou de aparecer. Até que um dia enquanto eu regava as plantas no jardim, ouvi aquela voz vindo de longe, foi se aproximando, cada vez mais nítido era o canto, eu me virei e lá estava ela, agora sem nenhuma timidez, me olhava cantando e sorrindo como a me perdoar por eu tê-la descoberto. Sorria um sorriso amigo, um sorriso de cumplicidade. Desse dia em diante nossa relação passou a ser de mais confiança. Por vezes eu até questiono sua forma de interpretar certas músicas e ela, é sempre muito paciente comigo, ao perceber alguma dificuldade de minha parte para assimilar uma nova melodia, repete quantas vezes for necessário. Agora há mais sinceridade entre nós, até as melodias são mais sinceras. Muitas vezes é com ela que eu desabafo meus problemas, ela não fala, mas me da muita atenção, é uma verdadeira amiga e uma boa ouvinte.
Embora eu não seja bom fisionomista hoje eu posso descrever como é a inspiração: _ Ela é um ser alado, pouco maior que um beija flor, muito transparente, sendo inclusive possível ver-se através dela, sua cor levemente azulada, nos da a impressão que ela é feita de água, as suas cordas vocais são externas e a pessoa que é agraciada com seu canto de melodias inéditas, pode inclusive vê-las vibrando. No rosto e no vôo, trás sempre uma expressão de acordo com a música, se a música é alegre ela sorri e voa com impulsos rápidos de um lado para o outro, se a música é triste, flutua leve no ar com lágrimas azuis, nos olhos ainda mais azuis.
Posso dizer que sou íntimo e convivo com bastante liberdade com a inspiração, que às vezes chega em momentos indesejáveis, então eu uso da liberdade que tenho e digo: _ Vá para outro, hoje eu tenho não tenho tempo pra você, deve haver vários compositores precisando de melodias, vá, vá . Ela parece ficar chateada e acaba indo embora, some por alguns dias, mas depois volta me rodeando, sempre com uma nova e bela melodia.
Várias canções como Imagine de John Lennon, Águas de Março de Tom Jobim, O Que Será de Chico Buarque e muitas outras já havia chega do a mim antes de serem compostas por esses artistas, mas como o momento não me era adequado, eu mandava que a inspiração fosse para outros, felizmente foram bem aproveitadas. Uma melodia que ela me trouxe certa vez, eu não entendi como sendo uma música, foi o “Samba de uma Nota Só”, aquela repetição da mesma nota parecia mais com um Código Morse, meses depois a ouvi no rádio e admiti que me faltou percepção e que esses rapazes, Tom Jobim e Newton Mendonça, eram realmente grandes compositores.
Pois então, não acredite se um dia alguém lhe disser:
_”A inspiração é um fenômeno do cérebro que todos vivenciam, mais poucos compreendem”. _ Pois eu digo e afirmo: _ A inspiração é viva, porém, só vem para os escolhidos.

BRIGA DE FOICE



Ernani Maller

Pode me torturar
Me rasgar
Me bater
Pode me ferir a dente
Me botar corrente
Pois eu sei sofrer

Pode me tratar a berro
Pois eu sou de ferro
Vou até o fim
Pode me ferir a boca
Por que isso é sopa
Lindo querubim

Mas quando cair a noite
Vai ter briga de foice
Pois não quero ver
Você virar de lado
Dizer que está cansado
Sem me enlouquecer

Se não sou eu
Quem te trata a berro
Tu terás que ser de ferro
Para me satisfazer

NA PORTA DO HOSPÍCIO



Ernani Maller


Tocou a campainha da garagem do hospício e o guarda foi atender, abriu uma pequena uma janela que mostrava apenas parte do seu rosto no meio do grande portão de ferro, um senhor de meia idade aparentando muita tristeza perguntou:
_ É aqui que é o hospício?
_ É sim. Respondeu o guarda.
_ Eu vim me internar.
_ Quem mandou o senhor?
_ Ninguém, eu vim por minha conta, eu “tô” maluco.
_ Mas hoje é domingo, e só está o médico de plantão, ele só atende os pacientes que já estão internados, o senhor tem que voltar amanhã as dez da manhã e falar com o doutor Renato.
_ Mas caso de emergência, esse médico que está aí, não atende?
_ Atender ele atende, mas o seu caso não é de emergência.
¬_ Como não?
_ Caso de emergência é quando chega em camisa-de-força.
_ E onde eu consigo essa tal camisa-de-força?
_ Eu não sei não, é o pessoal da ambulância que tem.
_ Será que eu não posso dormir aqui para amanhã eu falar com o doutor? Eu sei que ele vai me internar mesmo.
_ Não pode não, o senhor tem que voltar amanhã. Mas eu trabalho aqui há duas semanas e já tenho alguma experiência, posso lê adiantar uma coisa.
_ O que? _ Perguntou o candidato a paciente.
_ O senhor não está maluco, não.
_ Como é que você sabe?
_ Eu sei por que o senhor afirma que está maluco, não é?
_ É.
_ Então? Quem está maluco, não sabe que está maluco, portanto, se senhor acha que está maluco, é porque o senhor não está maluco.
_ Tem certeza?
_ Tenho.
_ Então o que, que eu faço com essa tristeza, essa angustia no meu peito e essa vontade de chorar?
_ O senhor vai pra casa, toma um copo de água com açúcar, senta quietinho num canto, que isso passa.
_ Sério?
_ Sério.
_ Então “ta” bom, muito obrigado.
_ De nada.
Deve ter dado certo, o homem nunca mais voltou.