sexta-feira, 24 de junho de 2011

A INSPIRAÇÃO É VIVA


Ernani Maller

Se alguém disser que a inspiração é viva, certamente algumas pessoas rirão, mas é justamente isso que passo a esclarecer agora. Confesso que com certo desconforto, mas juro, tudo que aqui eu relato é a mais pura verdade.
Eu ouvi aquelas cinco ou seis notas musicais, sem me preocupar em saber de onde vinham, era uma voz feminina, como dessas cantoras líricas, que tem a voz muito trabalhada. Vinha por trás da minha cabeça, e a pequena melodia era repetida insistentemente, até que eu comecei a cantarolar as notas e depois a elas a acrescentar outras notas. Em poucos minutos eu tinha uma melodia, na verdade, uma bela melodia, que futuramente ganharia uma letra e se tornaria uma linda canção.
Dias depois a voz voltou a soar em meus ouvidos, cantava desta vez uma melodia mais alegre, mais cheia de vida, já nas primeiras repetições eu decorei as notas. Como da primeira vez, aquela pequena melodia acrescentei outras notas musicais e mais uma bela música surgiu.
Foi assim que passei a conviver com a inspiração, compor com uma grande freqüência, porém, ainda sem entender de onde vinham aquelas melodias, como se elas saíssem realmente de dentro de mim, como é senso comum acreditar que a inspiração nasce dentro de cada um. Até que um dia a surpreendi. Eu havia virado o meu sofá, de forma que fiquei de frente para a janela, quando a inspiração entrou e começou a cantar às primeiras notas, deu com meus olhos observa-la. Ela ficou muito embaraçada e partiu sem me deixar nenhuma nova melodia e por vários dias deixou de aparecer. Até que um dia enquanto eu regava as plantas no jardim, ouvi aquela voz vindo de longe, foi se aproximando, cada vez mais nítido era o canto, eu me virei e lá estava ela, agora sem nenhuma timidez, me olhava cantando e sorrindo como a me perdoar por eu tê-la descoberto. Sorria um sorriso amigo, um sorriso de cumplicidade. Desse dia em diante nossa relação passou a ser de mais confiança. Por vezes eu até questiono sua forma de interpretar certas músicas e ela, é sempre muito paciente comigo, ao perceber alguma dificuldade de minha parte para assimilar uma nova melodia, repete quantas vezes for necessário. Agora há mais sinceridade entre nós, até as melodias são mais sinceras. Muitas vezes é com ela que eu desabafo meus problemas, ela não fala, mas me da muita atenção, é uma verdadeira amiga e uma boa ouvinte.
Embora eu não seja bom fisionomista hoje eu posso descrever como é a inspiração: _ Ela é um ser alado, pouco maior que um beija flor, muito transparente, sendo inclusive possível ver-se através dela, sua cor levemente azulada, nos da a impressão que ela é feita de água, as suas cordas vocais são externas e a pessoa que é agraciada com seu canto de melodias inéditas, pode inclusive vê-las vibrando. No rosto e no vôo, trás sempre uma expressão de acordo com a música, se a música é alegre ela sorri e voa com impulsos rápidos de um lado para o outro, se a música é triste, flutua leve no ar com lágrimas azuis, nos olhos ainda mais azuis.
Posso dizer que sou íntimo e convivo com bastante liberdade com a inspiração, que às vezes chega em momentos indesejáveis, então eu uso da liberdade que tenho e digo: _ Vá para outro, hoje eu tenho não tenho tempo pra você, deve haver vários compositores precisando de melodias, vá, vá . Ela parece ficar chateada e acaba indo embora, some por alguns dias, mas depois volta me rodeando, sempre com uma nova e bela melodia.
Várias canções como Imagine de John Lennon, Águas de Março de Tom Jobim, O Que Será de Chico Buarque e muitas outras já havia chega do a mim antes de serem compostas por esses artistas, mas como o momento não me era adequado, eu mandava que a inspiração fosse para outros, felizmente foram bem aproveitadas. Uma melodia que ela me trouxe certa vez, eu não entendi como sendo uma música, foi o “Samba de uma Nota Só”, aquela repetição da mesma nota parecia mais com um Código Morse, meses depois a ouvi no rádio e admiti que me faltou percepção e que esses rapazes, Tom Jobim e Newton Mendonça, eram realmente grandes compositores.
Pois então, não acredite se um dia alguém lhe disser:
_”A inspiração é um fenômeno do cérebro que todos vivenciam, mais poucos compreendem”. _ Pois eu digo e afirmo: _ A inspiração é viva, porém, só vem para os escolhidos.

BRIGA DE FOICE



Ernani Maller

Pode me torturar
Me rasgar
Me bater
Pode me ferir a dente
Me botar corrente
Pois eu sei sofrer

Pode me tratar a berro
Pois eu sou de ferro
Vou até o fim
Pode me ferir a boca
Por que isso é sopa
Lindo querubim

Mas quando cair a noite
Vai ter briga de foice
Pois não quero ver
Você virar de lado
Dizer que está cansado
Sem me enlouquecer

Se não sou eu
Quem te trata a berro
Tu terás que ser de ferro
Para me satisfazer

NA PORTA DO HOSPÍCIO



Ernani Maller


Tocou a campainha da garagem do hospício e o guarda foi atender, abriu uma pequena uma janela que mostrava apenas parte do seu rosto no meio do grande portão de ferro, um senhor de meia idade aparentando muita tristeza perguntou:
_ É aqui que é o hospício?
_ É sim. Respondeu o guarda.
_ Eu vim me internar.
_ Quem mandou o senhor?
_ Ninguém, eu vim por minha conta, eu “tô” maluco.
_ Mas hoje é domingo, e só está o médico de plantão, ele só atende os pacientes que já estão internados, o senhor tem que voltar amanhã as dez da manhã e falar com o doutor Renato.
_ Mas caso de emergência, esse médico que está aí, não atende?
_ Atender ele atende, mas o seu caso não é de emergência.
¬_ Como não?
_ Caso de emergência é quando chega em camisa-de-força.
_ E onde eu consigo essa tal camisa-de-força?
_ Eu não sei não, é o pessoal da ambulância que tem.
_ Será que eu não posso dormir aqui para amanhã eu falar com o doutor? Eu sei que ele vai me internar mesmo.
_ Não pode não, o senhor tem que voltar amanhã. Mas eu trabalho aqui há duas semanas e já tenho alguma experiência, posso lê adiantar uma coisa.
_ O que? _ Perguntou o candidato a paciente.
_ O senhor não está maluco, não.
_ Como é que você sabe?
_ Eu sei por que o senhor afirma que está maluco, não é?
_ É.
_ Então? Quem está maluco, não sabe que está maluco, portanto, se senhor acha que está maluco, é porque o senhor não está maluco.
_ Tem certeza?
_ Tenho.
_ Então o que, que eu faço com essa tristeza, essa angustia no meu peito e essa vontade de chorar?
_ O senhor vai pra casa, toma um copo de água com açúcar, senta quietinho num canto, que isso passa.
_ Sério?
_ Sério.
_ Então “ta” bom, muito obrigado.
_ De nada.
Deve ter dado certo, o homem nunca mais voltou.